Fies: alunos de medicina reclamam de aumento abusivo nas mensalidades

Reajustes de até oito vezes nas mensalidades fazem com que
estudantes de medicina, beneficiados pelo Fundo de Financiamento Estudantil
(Fies), não consigam mais pagar o curso. Os aumentos, segundo entrevistados
pela Agência Brasil, são frutos das mudanças feitas no Fies em 2017 e que
agora começam a gerar problemas.
A reportagem conversou com estudantes da Universidade Estácio
de Sá, no Rio de Janeiro, uma das poucas instituições privadas que
oferecem curso de medicina no país e que integra um dos maiores grupos de
educação no Brasil. Há estudantes que viram a contribuição que pagam por mês
subir de cerca de R$ 400 para mais de R$ 3 mil em apenas um semestre, durante a
pandemia. Como o programa é voltado para estudantes de baixa renda, com renda
familiar por pessoa de até três salários mínimos, as famílias dizem não ter
condições de bancar esses valores. Os casos aguardam julgamento na Justiça
Federal do Rio de Janeiro.
Entre esses estudantes, está Marta**, que começou a cursar
medicina no segundo semestre de 2019. “Consegui uma boa porcentagem de
financiamento [acima de 90%]. Foi a oportunidade que eu tive de fazer o que eu
sempre sonhei”. No primeiro semestre do curso, pagou, por mês, R$ 430. Em 2020,
no segundo semestre de medicina, esse valor passou para R$ 3,4 mil por mês. A
renda familiar vem da mãe, que trabalha como balconista em uma farmácia e do
pai, motorista de aplicativo. “A situação era bem difícil e ainda veio a
pandemia. O trabalho deles diminuiu muito”, diz.
O aumento foi muito acima do esperado e Marta conta que não
houve nenhum tipo de aviso ou justificativa. Eles procuraram a universidade e a
Caixa Econômica Federal, que opera o financiamento, e tentaram fazer um novo
ajuste. “Comecei a ficar com dívida, meu nome foi para o Serasa”. Ela conseguiu
negociar e a dívida foi parcelada em 18 vezes. Essas parcelas, no entanto, de
acordo com a estudante, somaram-se às mensalidades, elevando o valor para mais
de R$ 4 mil mensais. A família vendeu um terreno que tinha e conseguiu quitar o
semestre.
No segundo semestre de 2020, no entanto, os boletos começaram
a chegar, o problema voltou e o caso foi levado à Justiça. “É muito
desgastante. Um sentimento de não saber do seu futuro. Estar com o seu futuro e
ao mesmo tempo não estar com ele. Não tem nada certo para os próximos
semestres. Acaba sendo desgastante também para meus pais”, afirma. Sem quitar o
semestre anterior, os estudantes têm problemas para renovar o financiamento e,
consequentemente, para fazer a matrícula e se inscrever nas disciplinas.
Felipe**, que cursa o 5º semestre, está em uma situação
semelhante. “Estou com uma dívida ativa caríssima. Se sair da faculdade, ainda
fico com essa dívida, não tenho como pagá-la. Ou eu consigo terminar a
faculdade para poder quitá-la ou fico com essa dívida para o resto da vida”,
afirma. Pelas regras do programa, caso saiam da faculdade, os estudantes
precisam pagar o que receberam até o semestre em curso.
“Entrei na faculdade em 2019 com o Fies e quando fui ao banco
fazer o contrato e as simulações, o gerente até brincou comigo, disse que como
eu ia fazer medicina, a mensalidade não ia passar de R$ 1,2 mil. Pela minha
renda e da minha família, consegui uma boa porcentagem de financiamento”,
conta. O valor mensal, no entanto, subiu para mais de R$ 3 mil e o estudante
não conseguiu mais pagar.
A mãe de Felipe é dona de casa e o pai, pedreiro. “Para mim, é
muito importante terminar os estudos. Eu fiz o meu ensino fundamental e médio
em escola pública. Foi uma conquista minha, não fiz cursinho porque não
conseguia pagar, continuei os estudos em casa. Trabalhava e estudava. Conseguir
concluir o curso é ser a primeira pessoa da minha família a concluir a
faculdade”, diz.
Casos na Justiça
A advogada Claudiceia Nascimento Rocha, que representa 31
estudantes de medicina, considera os aumentos abusivos, pois não levaram em
consideração a renda familiar dos estudantes. “O Fies foi criado para facilitar
que alunos de baixa renda conseguissem se formar em cursos caros, aumentando a
quantidade de médicos, de engenheiros, a intenção foi essa. Só que hoje, o
programa está totalmente desfigurado do projeto inicial porque os alunos não
têm mais como arcar com a coparticipação”, diz.
Os processos envolvem tanto a Estácio, que segundo a advogada
não está sendo transparente em relação aos valores, quanto a própria Caixa e o
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia ligada ao
Ministério da Educação (MEC), responsável pela gestão do programa.
A intenção, segundo a advogada, é que os alunos possam
concluir os estudos e que sejam cobrados valores factíveis. “Os
alunos hoje não vão se formar e vão ter uma dívida
antecipada do Fies que não conseguirão pagar”, defende.
Fies
Criado em 1999, o Fies oferece financiamento a estudantes de baixa
renda em instituições particulares de ensino a condições mais favoráveis que as
de mercado. O programa, que chegou a firmar, em 2014, mais de 732 mil
contratos, sofreu, desde 2015, uma série de mudanças e enxugamentos. Em 2019,
foram cerca de 67 mil ingressantes no ensino superior pelo Fies, segundo o
último Censo da Educação Superior.
Um dos principais motivos para as mudanças nas regras do Fies,
de acordo com gestões anteriores do MEC, foi a alta inadimplência, ou seja,
estudantes que contratam o financiamento e não quitam as dívidas após formados.
O percentual de inadimplência registrado pelo programa chegou a atingir mais de
40%, de acordo com dados do MEC de 2018.
No final de 2017, foi lançado o Novo Fies, que passou a dividir o programa em diferentes
modalidades e começou a ser operado em 2018. Os estudantes passaram a
contribuir mais, ainda durante os cursos, com uma coparticipação, para evitar
prejuízos posteriores aos cofres públicos.
O chamado Fies juro zero, financiado pelo governo federal, é
voltado para alunos cuja renda familiar bruta mensal por pessoa não ultrapasse
três salários mínimos. Os estudantes entrevistados são beneficiados por essa
modalidade. O percentual de financiamento é definido de acordo com o
comprometimento da renda familiar e os valores cobrados pela instituição de
ensino superior. O Novo Fies tem também um teto de financiamento, que é de
cerca de R$ 43 mil por semestre, que corresponde a mais ou menos R$ 7 mil por
mês.
Hoje, o estudante beneficiado precisa pagar, mensalmente, o
valor da coparticipação, que corresponde à parcela dos encargos educacionais
não financiada, diretamente ao agente financeiro, ou seja, à Caixa. Se um
estudante obtém, por exemplo, um financiamento de 90%, precisa pagar 10% da
mensalidade ainda durante o curso. Caso o preço do curso exceda o limite de
financiamento do Fies, cabe ao estudante pagar também essa diferença.
Estácio
Segundo a Estácio, o aumento do valor pago pelos estudantes de
medicina vem dessa diferença entre o teto do Fies e a mensalidade do curso e
não há, por parte da instituição, cobranças abusivas.
Procurada pela Agência Brasil, a Estácio diz que, até
2019, a instituição, que era a interlocutora financeira, cobrava um valor de
semestralidade para os alunos fies inferior ao praticado para os demais
estudantes do curso e limitado ao teto estabelecido pelo programa de
financiamento, que é de cerca de R$ 43 mil. Os beneficiados pelo Fies pagavam
somente o valor não financiado por mês. “Era uma liberalidade da instituição
precificar sua semestralidade de forma a contribuir para que seus alunos Fies
conseguissem manter os seus estudos. Esta prática não é comum nos cursos de
medicina”, diz, em nota.
A Estácio afirma que, a partir do primeiro semestre de 2020,
devido a uma mudança no sistema aplicado pelo Fies, a Caixa passou a ser a
responsável pela cobrança financeira do aluno. Agora, quem emite o boleto é o
banco e não mais a instituição de ensino. Com isso, começou a ser cobrado o
valor praticado para os demais alunos de cerca de R$ 60 mil por semestre.
“Os boletos passaram a ser emitidos pelo banco, considerando a
faixa real da semestralidade praticada pela IES [Instituições de Ensino
Superior] para todos os seus alunos de medicina, ocasionando a diferença de
valor citada. É importante lembrar que o estudante de medicina tem ciência dos
valores ao aditar o contrato com o Fies no começo de cada período”.
A universidade afirma ainda que está avaliando os casos dessa
natureza e estudando soluções que visam amparar os estudantes nos próximos
ciclos.
Caixa
Já a Caixa diz, em nota, que apenas segue o valor informado
pela instituição de ensino e que não há qualquer impedimento para que os
descontos sigam sendo aplicados. "A coparticipação reflete os valores
de semestralidade informados pela Instituição de Ensino, a quem cabe informar e
considerar todos os descontos concedidos ao aluno quando da matrícula, não
havendo qualquer impedimento para aplicação dos referidos descontos",
esclarece.
Programa esvaziado
Para o diretor executivo da Associação Brasileira de
Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), Sólon Caldas, o programa está ficando
cada vez mais inviável tanto para novos alunos quanto para os que já estão
matriculados. Segundo ele, os casos dos estudantes de medicina não são
isolados.
Na avaliação de Caldas, as mudanças no Fies fizeram com que o
programa perdesse o caráter social, que possibilitava o ingresso de
estudantes das classes C, D e E no ensino superior, e passasse
a ter um caráter financeiro. O diretor executivo da Abmes diz
que, quando as mudanças estavam sendo discutidas no Congresso Nacional, as
instituições alertaram para problemas futuros como uma maior dificuldade dos
estudantes em pagarem os encargos, o que está ocorrendo agora.
Segundo Caldas, o programa deixou de ser vantajoso para os
alunos. “Os estudantes preferem ter uma bolsa de estudos de 30%, 40%
[ofertada pela própria instituição] do que contratar o financiamento
estudantil”, diz. No caso dos cursos de medicina, que são mais caros e
concorridos que os demais, ele explica que, geralmente, não há oferta de bolsas
e os estudantes acabam recorrendo ao financiamento.
A questão do endividamento e da evasão dos alunos é uma
preocupação das instituições de ensino particulares que detêm hoje pouco
mais de 75% de todas as matrículas do ensino superior do país.
No ano passado, entidades representantes das instituições
particulares de ensino assinaram um ofício encaminhado ao governo federal
chamando atenção para “o extremo risco de evasão de estudantes, especialmente
nos cursos da área da saúde, com um reflexo prejudicial não só em toda
economia, mas também diretamente no enfrentamento da própria pandemia no âmbito
das ações estratégicas do governo federal”.
Segundo o documento, a crise provocada pela pandemia da
covid-19 “está atingindo duramente os estudantes de menor renda matriculados no
ensino superior particular onde juntos eles representam 65% do total dos
alunos, ou seja, cerca de 4,142 milhões de estudantes pertencentes às classes
C, D, E”.
Caldas explica que o pedido é por um Fies Emergencial que
cubra até 100% da mensalidade - o que não é mais praticado pelo Fies - de
acordo com as necessidades de cada estudante. “A gente pediu muito ao governo,
sobretudo na pandemia, que pudesse oferecer um Fies Emergencial para socorrer
vários alunos que não estão conseguindo se manter matriculados nem ingressar no
ensino superior”, diz.
FNDE
Procurado, o FNDE disse que iniciou um estudo para avaliação
das mensalidades dos cursos de medicina, uma vez que recebeu um elevado número
de demandas, em especial, de estudantes da Estácio.
Sobre possíveis mudanças para que o programa se torne mais
viável a alunos carentes, o FNDE diz que eventuais distorções no Fies “são
discutidos entre MEC, FNDE e CG-FIES [Comitê Gestor do Fies] de forma que o
programa contribua cada vez mais para o acesso e permanência dos estudantes no
ensino superior que não podem arcar com os encargos educacionais, alinhado com
o previsto no Plano Nacional de Educação”.
(*) Com informações da Agência Brasil.
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